Introdução:
Ao contrário de testes para avaliação do olfato, testes padronizados para avaliação do paladar são raramente disponíveis para uso rotineiro. Isto ocorre por alguns motivos, entre eles podemos citar a dificuldade de realizar um teste confiável e rápido de paladar e a baixa frequência de queixas desse tipo, que quando ocorrem refletem na maioria das vezes alteração do olfato.
Sintomas referentes ao paladar e ao olfato são alvos de confusão freqüente porque “gosto” e “sabor” são usados como sinônimos em diversas situações1. Gosto poderia ser salgado, doce, azedo e amargo, além dos ainda não totalmente aceitos, umami (evocado pelo glutamato monossódico) e metálico. Já sabor é a associação de sensações captadas tanto pelo olfato quanto pelo paladar, como por exemplo, o sabor de chocolate, morango… O sabor apresenta quase que 90% de seu componente dependente do olfato2. Essa confusão na definição leva a queixas de alteração gustativa, quando, na verdade, o que está alterado é apenas o olfato3.
Além disso, diferente do olfato que possui, basicamente, apenas um nervo craniano responsável, a sensação do paladar é transmitida por diferentes nervos cranianos (V,VII, IX, X). Em razão disso, a completa perda do paladar é rara1.
Objetivo:
O objetivo deste artigo é revisar o funcionamento do sistema gustatório e as formas de avaliar as diferentes alterações deste sistema.
Considerações Anatomofuncionais:
A sensação dos botões gustativos nos dois terços anteriores da língua e no palato mole seguem respectivamente por dois ramos do nervo facial: o nervo corda do tímpano e o nervo petroso superficial maior. O nervo corda do tímpano, cujos corpos celulares estão no gânglio geniculado, dividem uma via comum com as fibras do nervo lingual (ramo da divisão mandibular do nervo trigêmeo) proximalmente à língua. Este nervo recebe esse nome por passar livre, sem proteção, dentro da orelha média e inerva todas papilas fungiformes e a maioria das papilas foliáceas anteriores. As suas fibras gustativas saem do núcleo do trato solitário através do nervo intermédio que se une após atravessar o conduto auditivo interno ao nervo facial. Essa fibras percorrem este nervo até a sua porção mastóidea onde nasce o nervo cordo tímpano. O nervo petroso superficial maior é responsável pela sensibilidade gustativa do palato mole, que pode conter tantos botões gustativos quanto a porção anterior da língua4.
Todas as papilas circunvaladas e a maioria das foliadas, localizadas no terço posterior da língua, são inervadas pelo ramo línguo-tonsilar do nervo glossofaríngeo. Os botões gustativos da nasofaringe são supridos pelo ramo faríngeo do nono nervo craniano, cujos corpos celulares estão no gânglio petroso.
Os botões gustativos na epiglote, as pregas ariepiglóticas e o esôfago são inervados pelo nervo vago pela porção interna do nervo laríngeo superior que tem seu corpo celular no gânglio nodal.
Uma única fibra de axônio pode inervar várias células dentro de um botão gustativo, assim como, inervar vários botões (Doty et al, 2002). Essas fibras dificilmente apresentam ramos que cruzam a linha média, deixando os lados direito e esquerdo da língua sob controle periférico completamente independentes (Breslin et al, 2006). Assim, a perda de um campo gustatório na língua que envolva os dois lados é usualmente associada a dano nos receptores por lesão física ou por trauma químico local. O dano neural periférico, a exemplo do que ocorre com o nervo corda do tímpano numa cirurgia otológica, é associado a efeitos assimétricos, ou seja, só um lado fica comprometido.
As fibras dos nervos VII, IX e X se encontram no núcleo do trato solitário (NTS) e fazem ali a sinapse inicial. Células do NTS fazem conexões através do tálamo com o opérculo primário e o córtex gustatório insular, assim como, com o córtex orbitofrontal, giro cingular e outras áreas de projeção integrada de multimodalidades. Existe ainda uma via ventral anterior para sinais gustatórios que passa pelas seguintes estruturas: stria terminal, hipotálamo, corpos mamilares, amígdala, hipocampo e outras áreas do sistema límbico4.
Antigamente acreditava-se que haveria um mapa lingual com a predominância de alguns gostos em determinada parte da superfície lingual, como por exemplo o doce na ponta da língua. No entanto, este conceito, apesar de muito difundido, foi baseado em interpretações erradas de estudo do século XIX, sendo hoje conhecido que qualquer gosto pode ser sentido em diferentes partes da superfície lingual1.
Distúrbios do Paladar
Os distúrbios do paladar podem ser classificados em perda parcial (hipogeusia), perda total (ageusia) e qualquer sensação de alteração no paladar (disgeusia). Caso o paciente apresente distorção do paladar com a presença de estímulo temos a parageusia, e sem estímulo, a fantogeusia. As perdas do paladar são muito mais frequentes do que o aumento nesse sentido.
A ageusia é rara, quando presente é geralmente central (exemplo: acidente vascular encefálico), já que o dano periférico deveria envolver diferentes vias para resultar numa perda total do paladar. Um estudo do Centro de Paladar e Olfato da Universidade da Pensilvânia avaliou um grupo de 585 pessoas e verificou que 74% apresentavam queixa tanto para olfato quanto para paladar, sendo que somente 4% desses realmente apresentavam alguma desordem gustativa, o restante era uma queixa apenas olfatória4.
A maioria dos pacientes não percebe um déficit localizado no paladar, como o que ocorre na secção do nervo corda do tímpano em uma cirurgia otológica, tanto pela redundância dos múltiplos nervos gustativos quanto pela compensação central1. Para que essa última característica ocorra, é fundamental o fenômeno de inibição. Essa inibição central parece ocorrer através de aferentes gustatórios dos nervos VII, IX e X, que convergem para o núcleo solitário no bulbo, aumentando ou diminuindo as áreas de sensação lingual de acordo com a presença ou ausência do estímulo2. Assim, se ocorrer uma lesão do corda do tímpano, as sensações do terço posterior, assim como as de outras áreas da cavidade oral, não afetadas, serão mais percebidas centralmente e substituirão as dos dois terços anteriores, mostrando que a sensação gustativa é fornecida pela cavidade oral como um todo.
Avaliação Clínica da Função Gustatória
- História:
A pesquisa da causa de distúrbios do paladar deve levar em consideração alguns questionamentos: (1) é causado por medicamentos? (2) é causado por fatores locais como atrofia, lesão ou alteração na composição salivar; (3) é causado por dano ao sistema nervoso central ou periférico; (4) é causado por doença sistêmica.
Problemas atuais ou passados envolvendo salivação, mastigação, deglutição, lesões orais, xerostomia, doença periodontal, bruxismo ou halitose devem ser interrogados numa pesquisa de alteração no paladar. Outros distúrbios como dieta e doença do refluxo gastroesofágico são importante, já que ácido gástrico pode danificar botões gustativos na língua. Tratamentos dentários ou radioterápicos podem gerar distúrbios gustatórios4.
Alterações na audição e no equilíbrio, assim como infecções ou cirurgia otológicas, devem ser ressaltadas devido à passagem do nervo corda do tímpano livremente pela orelha média.
Uso de medicamentos que alteram o paladar – antibiótico, agentes redutores lipídicos, anti-hipertensivos – devem ser investigados. Ver quadro 1 para listagem completa de medicamentos5.
A gravidez parece afetar a sensibilidade gustativa com decréscimo da mesma. Ochsenbein-Kolble et al encontraram esse resultado em seu estudo e acreditaram que a alteração no paladar com a gestação era uma forma de adaptação para que houvesse consumo adequado de eletrólitos durante o período6.
Alterações no paladar causados pelo tabagismo parecem ser provocadas por exposição a toxinas químicas. Gromyzs-Kalkovska et al estudaram os efeitos do tabagismo em 471 indivíduos, um dos maiores estudos sobre esse tema, e não encontraram significância estatística na relação entre tabagismo e sensibilidade gustatória7.
Entre outras possíveis causas de distúrbio do paladar temos infecções virais, bacterianas, fúngicas ou parasitárias da mucosa hipofaríngea e oral. Mucosite por radiação ou má higiene oral também podem alterar o paladar8. Envelhecimento pode contribuir para hipogeusia principalmente, para amargo e azedo9.
Lesão do nervo corda do tímpano pode ocorrer por cirurgia otológica ou por infecções na orelha média como otite média crônica. Doenças que atingem o nervo facial como paralisia de Bell, Síndrome de Ramsay Hunt e doença de Lyme, podem acometer também o corda do tímpano. Lesões de ramos faríngeos do nervo glossofaríngeo podem ocorrer por cirurgias em orofaringe como amigdalectomia ou uvulopalatofaringoplastia4. O envolvimento dos nervos IX e X em tumores glômicos, carcinomas escamocelulares ou neurinomas podem gerar alterações no paladar em alguns casos.
Algumas doenças sistêmicas podem acarretar uma diminuição da sensibilidade gustatória, como na doença renal, que pode gerar também fantosmia, e na diabetes mellitus, através de neuropatia diabética10. Muitas medicações são associadas a queixas de hipo ou ageusia, mas poucas tiveram seus efeitos no paladar realmente avaliadas em estudos clínicos5.
2) Exame Físico
Exames dos nervos responsáveis pelo paladar (VII, IX, X), mesmo de suas funções não-gustativas, ajudam a esclarecer sobre possíveis alterações nesse sentido. Lesões orais devem ser investigadas através de inspeção e palpação, como no caso de neoplasias em musculatura língual que podem cursar com alteração apenas nessa última forma de exame.
Nos casos em que uma explicação para o problema do paladar não possa ser encontrada, associado a exames físicos solicitamos exames de neuroimagem que devem ser realizados para descartar tumores do SNC ou outras lesões nessa área4.
3) Testes Gustatórios
Em contraste com vários testes olfatórios já estabelecidos, há uma grande deficiência em testes adequados para o paladar11. Os testes podem ser quantitativos ou qualitativos, sendo que o teste ideal deve possuir ambas as características.
Os testes qualitativos são realizados com algumas substâncias para refletir os diferentes gostos: cloreto de sódio (salgado), sacarose (doce), quinino (amargo) e ácido cítrico (azedo) são os compostos mais utilizados. Já os testes quantitativos são raramente realizados como exame clínico de rotina, principalmente devido a problemas de praticidade (tempo do exame prolongado, gasto com material e preparo das soluções). Eles avaliam o limiar gustatório do examinado através de diferentes concentrações das diversas soluções preparadas. Para acessar a intensidade da sensibilidade gustatória de uma pessoa, pode-se utilizar o próprio examinado como seu controle e procurar discrepâncias entre lado direito e esquerdo da cavidade oral, já que existem diversas variações entre indivíduos12.
Outra característica dos testes de paladar é a diferença na delimitação da área a ser avaliada. Eles podem testar a cavidade oral como um todo, como no teste das três gotas, ou locais específicos da cavidade oral, como na eletrogustometria ou no teste das tiras gustativas.
Entre os diversos testes já elaborados, vamos descrever o teste das três gotas, a eletrogustometria e o teste com tiras gustativas ou fitas de papel-filtro.
A) Teste das Três Gotas:
O teste das três gotas foi descrito em 196313, sendo caracterizado por três gotas colocadas na língua, sendo uma gota de um dos gostos específicos e as outras duas de água, com sua identificação pelo examinado. São utilizadas as soluções de cloreto de sódio (sal), sacarose (doce), quinino (amargo) e ácido cítrico (azedo) nas gotas. O limiar é estabelecido na concentração que o paciente acertar por três vezes consecutivas.
É um teste tanto quantitativo quanto qualitativo. A língua deve permanecer fora da cavidade oral durante todo teste. Apresenta como desvantagens: o tempo gasto com seu preparo e sua realização; as soluções não possuem tempo de armazenamento longo e devem ser preparadas e utilizadas naquele momento; e é difícil diferenciar em que região da língua há alteração 4,14
B) Eletrogustometria:
A eletrogustometria é baseada na fraca estimulação elétrica que gera um gosto azedo ou metálico quando aplicado sobre receptores gustatórios. Com correntes fracas, o estímulo atinge somente as fibras gustativas e não as aferências trigêminais. Como pontos positivos: é um método que garante controle quantitativo sobre a intensidade do estímulo; requer curto período para realização; e é de fácil realização15. Entretanto, é incapaz de avaliar qualquer outro gosto além do azedo, ou seja, é um teste quantitativo, mas não qualitativo3. Além disso, a relação entre limiar elétrico e químico ainda não foi totalmente estabelecida14.
C) Testes das tiras gustativas:
O teste das tiras gustativas, descrito em 200314, é caracterizado pela apresentação dos quatro gostos em papel-filtro com quatro diferentes concentrações para cada gosto. É um teste tanto quantitativo quanto qualitativo, além de ser capaz de avaliar áreas específicas da língua. O examinado permanece com a língua fora da cavidade oral e aponta num quadro qual é o gosto que acha que lhe foi oferecido. Entre suas vantagens temos: a possibilidade de avaliação de cada lado da língua separadamente; utilização de material com tempo de armazenamento prolongado; e realização com diferentes concentrações, conseguindo quantificar o grau de perda.
O exame é realizado com concentrações diferentes de sal, doce, amargo e azedo e duas tiras com água, totalisando 18 tiras. As concentrações utilizadas são: azedo – ácido cítrico 0,3 g/ml, 0,165 g/ml, 0,09 g/ml, e 0,05 g/ml; amargo – sulfato de quinino 0,006 g/ml, 0,0024 g/ml, 0,0009 g/ml e 0,0004 g/ml; doce- sacarose 0,4 g/ml, 0,2 g/ml, 0,1 g/ml e 0,05 g/ml; sal- cloreto de sódio 0,25 g/ml, 0,1 g/ml, 0,04 g/ml e 0,016 g/ml. Essas tiras são de papel-filtro medindo 8cm de comprimento com área de 0,2 cm2. As tiras são posicionadas na metade da língua (ver figura 1) que será avaliada e o paciente, mantendo a língua fora da cavidade oral, deve apontar num quadro qual o gosto que está sentindo, entre as seguintes opções: salgado, doce, amargo, azedo e água. Sua avaliação varia de 0 (zero) a 16, com o resultado inferior a 8 considerado hipogeusia14.
Comentários Finais:
A gustação é um dos sistemas mais complexos do corpo com mais de uma via de informação da periferia ao sistema nervoso central. A diferenciação entre sabor e gosto é importante, já que a maior parte das queixas vai envolver o olfato e não o paladar. Uma boa anamnese, exame físico e conhecimento dos diferentes testes gustatórios com suas vantagens e desvantagens auxilia no diagnóstico da etiologia das alterações do paladar.
Referências Bibliográficas:
- BRESLIN, P.A.S.; HUANG, L. Human Taste: peripheral anatomy, taste transduction, and coding. Adv Otorhinolaryngol, v. 63, p. 152-190, 2006.
- LANDIS, B.N.; BEUTNER, D.; FRASNELLI, J. Gustatory function in chronic inflammatory middle ear disease. Laryngoscope, v.115, p. 1124-7, 2005.
- WROBEL, B.B.; LEOPOLD, D. A. Clinical Assessment of patients with smell and taste disorders. Otolaryngol Clin N Am, v. 37, p. 1127-1142, 2004.
- DOTY, L. D.; BROMLEY, S.M. Olfaction and Gustation. In: Ballenger Otolaryngology and Head & Neck Surgery, New York: BC Decker, 2002, p. 561-591.
- REITER, E. R.; DINARDO, L. J.; COSTANZO, R. M. Toxic effects on gustatory function. Adv Otorhinolaryngol, v. 63, p. 265-277, 2006.
- OCHSENBEIN-KOLBLE, N.; MERING, R.V.; ZIMMERMANN,B. et al. Changes in gustatory function during the course of pregnancy and postpartum. Br J Obst Gyn, v. 112, p. 1636-1640, 2005.
- GROMYSZ-KALKOWSKA, K.; WOJCIK, K.; SZURBARTOWSKA, E.et al. Taste perception of cigarette smokers. Ann Univ Mariae Curie Sklodowska, v. 52, p. 143-154, 2002.
- MANDEL, S.J.; MANDEL, L. Radioactive iodine and the salivary glands. Thyroid, v. 13, p. 265-271, 2003.
- SEIBERLING, K. A.; CONLEY, D. B. Aging and olfactory and taste function. Otolaryngol Clin N Am, v. 37, p. 1209-1228, 2004.
- KETTANETH A.; PARIES, J.; STIRNEMANN,J et al. Clinical and biological features associated with taste loss in internal medicine patients. A cross-sectional study of 100 cases. Appetite, v. 44, p. 163-169, 2005.
- SNYDER, D. J.; PRESCOTT, J.; BARTOSHUK, L. M. Modern psychophysics and the assessment of human oral sensation. Adv Otorhinolaryngol, v. 63, p. 221-241, 2006.
- KVETON, J.F.; BARTOSHUK, L.M. Taste. In: BAILEY, B.J.; CALHOUN, K.H.; HEALY, G.B. et al. Head & Neck Surgery – Otolaryngology. 4th ed., Pennsylvania: Lippincott Williams & Wilkins, 2006.
- HENKIN, R.I.; GILL, J. R.; BARTTER, F.C. Studies on Taste Thresholds in Normal Man and in patientswith adrenal cortical insufficiency: the role of adrenal cortical steroids and of serum sodium concentration. J Clin Invest, v. 42, p. 727-735, 1963.
- MUELLER, C.; KALLERT, S. ; RENNER, B. ; et al. Quantitative assessment of gustatory function in a clinical context using impregnated “taste strips.” Rhinology, v.41, p. 2–6, 2003.
- TOMITA, H.; IKEDA, M. Clinical use of electrogustometry: strengths and limitations. Acta Otolaryngol Suppl, v. 546, p. 27-38, 2002.